CONTEXTUALIZAÇÃO

O estudo UDJU RIBA DI NÔ VOTO resultou de uma iniciativa do Grupo de Teatro do Oprimido (GTO-Bissau), em parceria com a sua congénere alemã Weltfriedensdienst e.V. (wfd), no âmbito do 14º Passo do projeto Fórum de Paz, envolvendo os os 11 Grupos de Kumpuduris di Paz, estabelecidos em todas as regiões administrativas da Guiné-Bissau, incluindo o Setor Autónomo de Bissau, SAB.

Após a experiência de 500 anos da dominação colonial e de 17 anos de ditadura da classe castrense, a Guiné-Bissau, influenciada pelo contexto global neoliberal, aderiu à democracia, em 1991, e realizou, em 1994, as primeiras eleições gerais (legislativas e presidenciais).

Portanto, em 31 anos de adesão à democracia e 28 anos do período de realização das primeiras eleições já se contabilizou 13 pleitos, sendo 7 presidenciais e 6 legislativas, tempo necessário para provocar uma reflexão imparcial e consciente da sociedade guineense sobre o recente percurso democrático e, consequentemente, observar os resultados alcançados.

Sem pretensão de antecipar leituras e percepções dos eleitores, o histórico do desempenho recente do processo democrático se inscreve numa dinâmica de mais recuos e menos avanços, evidenciado, sobretudo, por ciclos de instabilidade política-governativa que não só têm contribuído na fragilidade do desempenho de instituições democráticas, como também abriram possibilidades para níveis visíveis de vícios políticos e insatisfação social em relação a não observância dos valores fundamentais da democracia e, concomitantemente, sobre a incapacidade de engajamento democrático e ausência, quase plena, de apropriação de valores de cidadania por parte do povo (eleitores), enquanto atores fundamentais para suportar as premissas de participação e contestação defendida por Panebianco (2005). 

Outra motivação para a elaboração desse estudo prende-se à recente experiência do projeto Fórum de Paz, em que se teve a participação de GKPs nos trabalhos de acompanhamento dos processos eleitorais no país, cujos resultados apontam para o incumprimento dos requisitos da liberdade, justiça e transparência durante processos eleitorais.

Observa-se, com uma certa frequência, nos debates públicos e em alguns trabalhos académicos como os de Nobrega (2003), Fernandes (2018), Sambu (1989) e outros, que muitos partidos ou candidatos aproveitam o momento de luta pelo poder para apelar a estratégias de manipulação de potenciais eleitores, principalmente nas questões de pertencimento étnico-religioso para fazer face ao adversário político e angariar votos. 

Até na Assembleia Nacional Popular (ANP) essa manifestação identitária é verificada na atribuição de mandatos por círculo. A maior parte dos deputados eleitos não é indicada a concorrer pelo partido e nem se pondera o seu perfil político. A sua nomeação é feita a partir de sua influência identitária, em detrimento de qualidades académicas, técnicas-profissionais, administrativas e de sua idoneidade. A origem dessa banalização na representação parlamentar aponta para o “modus operandi” dos partidos, que a princípio encaram a seleção de candidatos ao parlamento subjetivamente, na ótica de disputa de critérios de pertencimento étnico-religioso. 

Outro fator que também tem crescido exponencialmente ao longo dessa recente história democrática no país e que influencia a decisão eleitoral é o uso de recursos financeiros e materiais, supostamente, de proveniências duvidosas, injustificados, conforme prevê o artigo 49 da Lei eleitoral, e que acabam por ser elementos determinantes não só na compra de consciência dos eleitores, como também nas injustiças financeiras observadas durante o processo.

Com exceção dos círculos eleitorais da diáspora e de Bissau, devido à heterogeneidade de seus eleitores que representam tanto a diversidade etnocultural guineense quanto concentram a maior parte da massa crítica com notória capacidade de discernimento nos restantes 21 círculos eleitorais do país, o predomínio do caráter homogêneo, do ponto de vista étnico-religiosa tem sido um fator determinante nas decisões de escolha eleitoral.

Entende-se que as campanhas eleitorais deveriam proporcionar debates políticos, discussão e reflexão sobre os programas eleitorais, de partidos e candidatos, e, consequentemente, influenciar, racionalmente, o voto. No entanto, paradoxalmente, passam a ser encarados, quer pelos eleitores como pelos políticos, apenas como um mero momento de troca de favores e de identificação étnica. 

O ambiente é geralmente caracterizado por festas, com sons de tambores, músicas, comidas, bebidas e doação de bens. Ainda se privilegiam práticas e mecanismos de controlo social, como por exemplo, utilização de “mandjidura, findi kola” e falsas promessas, estratégias essas que visam manipular e mobilizar a orientação de voto.

Essa estratégia de caça ao voto, além de retirar aos eleitorados a capacidade de reflexão sobre a importância e o sentido do voto, contribui para a criação de vínculo numa relação de troca de favores, “dá-cá, tomá-la”, entre candidatos e eleitores. Nesse sentido, não é incomum observar que, após o período de campanha, a maior parte dos eleitores não consegue identificar com precisão o candidato em quem votou e tampouco acompanhar o que os representantes eleitos prometeram fazer em seu benefício, ou seja, se esses realmente defendem e legislam políticas públicas a seu favor ou se apenas procuram defender seus interesses e do grupo político a que pertencem.

Desse modo, este estudo visa procurar responder as seguintes questões: Por que os eleitores se mobilizam a votar? Que sentido os mesmos dão aos seus votos? Que análise fazem da democracia no país? Como a orientação de voto tem determinado suas escolhas? O que significa o momento de campanha eleitoral para os mesmos? Essas e outras indagações são elementos que se pretende analisar a partir da perspetiva do sentido que os eleitores dão aos seus votos, tendo em vista a urgência e necessidade de retorno das políticas públicas favoráveis que asseguram de maneira efetiva a dignidade dos cidadãos.

considerações

Conforme mencionado na parte introdutória, o processo democrático guineense é recente, contudo, é consensual que o país já acumulou pouco mais de meia dúzia de eleições gerais – legislativas e presidenciais – que permitem alguma reflexão sobre essa experiência, com foco no comportamento do eleitor. 

O estudo UDJU RIBA DI NÔ VOTO apresenta-se como um exercício que visa observar a importância que os eleitores guineenses dão aos seus votos, bem como o tipo de relação estabelecida com partidos e candidatos durante a campanha eleitoral. Aliás, num processo eleitoral, como disse Almeida (2008: 58 e 59):

tudo depende do eleitor. É ele quem avalia bem ou mal o governo. É ele quem responde aos estímulos dos candidatos conferindo-lhes, ou não, uma identidade clara. É ele quem se lembra ou se esquece dos candidatos”. 

E é justamente com base nessa relevância da decisão de votar que o estudo procurou observar os aspetos do processo, nomeadamente, o compromisso cidadão de votar, os critérios utilizados para escolher um partido ou candidato, a expetativa em relação ao comportamento das instituições democráticas e a avaliação do desempenho da democracia no país.

De acordo com os dados gerais do estudo, 78% dos eleitores entrevistados já votaram nas eleições legislativas e presidenciais, contra apenas 27% daqueles que admitiram ter votado nas eleições gerais. Esse facto sustenta um histórico favorável de participação que caracterizou a afluência às urnas nas sucessivas eleições na Guiné-Bissau. 

Mas, por outro lado, levanta a dificuldade que os eleitores têm em decifrar as denominações eleitorais (eleições gerais, presidenciais, legislativas ou autárquicas). E, supostamente, essa situação nos remete a pensar que uma boa parte dos eleitores vai às urnas votar sem a noção do que e para que estão a votar. Todavia, para eles, o mais importante seria talvez fixar a bandeira do partido, já que o sistema para eleições legislativas é de lista uninominal, ou o rosto do candidato, no caso das presidenciais.

Entretanto, em relação à questão das promessas durante o período da campanha eleitoral, constatou-se que, praticamente em todas as regiões e também no SAB, a maioria dos eleitores já não acredita no que dizem os partidos e candidatos. Apenas para ilustrar, num universo de 3646 eleitores entrevistados, 68% não acreditam nas promessas eleitorais dos candidatos, alegando, sobretudo, o histórico de incumprimento, enquanto 31% acreditam, justificando seus motivos com militância ou simpatia.

E, apesar do ambiente de desconfiança, 70% dos eleitores consideram que o período da campanha eleitoral é o momento em que se apresentam as preocupações das comunidades aos candidatos. Contudo, para 16%, não passou despercebido a questão de conflito manifesto nesse período, sobretudo de cunho familiar, étnico e religioso. 

É necessário admitir que, embora essa preocupação não seja dominante entre os eleitores, ela sempre esteve presente nos debates do grupo focal e nas respostas dos questionários em todas as regiões. Houve, por parte dos eleitores, o reconhecimento de uma descaraterização da qualidade da campanha, tomando como referência a primeira, de 1994, até o presente. Em suas observações, o processo tem sofrido desgastes e os discursos políticos que incentivam à divisão étnico-religiosa, a estigmatização campo/cidade e tensão social tornam-se cada vez mais visíveis.

Com o efeito, na sua reflexão sobre a problemática da construção da nação no pós-independência e, particularmente, durante o período monopartidário, Cardoso (1989: 293) já chamava a atenção para o facto de fator étnico ainda ser substancial na vida guineense, concretamente na atividade partidária. Essa realidade, no contexto multipartidário atual, tornou-se ainda mais acirrada, a ponto de eleição ser gradualmente encarada como uma disputa entre diversos grupos identitários.

A influência de terceiros na decisão de voto não é reconhecida em todas as regiões, nem pelos eleitores entrevistados no SAB, como uma prática comum durante o período da campanha eleitoral. Os eleitores mostraram ser autónomos em relação a qualquer tipo de influência. No entanto 84% admitiram que os partidos e candidatos oferecem bens materiais, comida, bebida e dinheiro para conseguir votos nas comunidades.

Nos encontros do grupo focal realizados, a prática de compra de consciência dos eleitores foi reconhecida pelos participantes, que, mencionaram a existência de pelo menos três tipos de influência. Primeiramente, a estratégia de ação corpo a corpo, que envolve a oferta de bens materiais, comida, bebida e dinheiro, é a mais comum e visível nas regiões. 

Em segundo lugar, essa estratégia tem duas manifestações: por um lado, o papel dominante do homem dentro da família, que obriga todos os membros a seguirem a sua decisão de voto; e por outro lado, a utilização de mecanismos tradicionais coercitivos, como “findi cola”, “mandjidura” e “praga”, que são aplicados em grupos sociais mais restritos e homogéneos. 

Por último, também se utiliza instituições públicas e privadas para pressionar os servidores. Os servidores são forçados a apoiar partidos e candidatos em troca de nomeação ou garantia de permanência nos seus postos de trabalho. Além disso, muitos eleitores, por causa do seu envolvimento na campanha eleitoral, conseguem, por meio do partido, garantir o acesso ao seu primeiro emprego sem passar pelas exigências legais do concurso público.

Quanto à decisão dos eleitores, encontramos dois grupos com posições opostas. Um relativamente maioritário, que representa 52%, afirma que sempre votou no mesmo partido. Outro grupo, que representa 48%, diz que mudou sua decisão de voto com base nas suas próprias análises sobre o partido ou candidato. Na Guiné-Bissau, desde a abertura política, em alguns círculos e distritos com caraterísticas identitárias homogéneas, os eleitores adotam uma postura fixa em relação à decisão de voto. 

Para esses eleitores, não importam o programa, a promessa, o nível de preparo do candidato ou os princípios ideológicos partidários. O que realmente conta são os vínculos identitários étnico-religioso, que se tornam num parâmetro fundamental para a escolha. O facto é contrário ao que Klein (2002: 146) sugere, pois ele considera que a manutenção da confiança depende, basicamente, do desempenho dos membros do partido no exercício dos cargos legislativos e administrativos, além da implementação das ideias e programas que prometeram durante a campanha eleitoral.

Houve várias manifestações de eleitores no estudo, chamando a atenção e apontando que fatores desse tipo estão a contribuir para uma crescente fragmentação social. Se não forem tomadas as devidas precauções, isso pode tornar-se um risco para coesão e a unidade nacional. A postura, às vezes, enviesada, do eleitor recebeu uma crítica na leitura utilitarista do sentido do voto de Schumpeter (1961: 313-314). Ele afirma que:

os eleitores de corruptos são amiúde maus juízes dos seus próprios interesses a longo prazo, pois tomam em consideração politicamente apenas a promessa a curto prazo, e a racionalidade a curto prazo é a única que realmente prevalece”.

Também ficou evidente que, independentemente do nível de escolaridade, todos os eleitores têm consciência das dificuldades existentes nos setores da educação, saúde, emprego, eletricidade, acesso à água e transportes. No entanto, os participantes do grupo focal acreditam que a responsabilidade de eleger candidatos sem o mínimo de preparo para o parlamento é dos partidos, pois são eles que fazem a seleção dos candidatos, enquanto os eleitores apenas exercem seu direito cívico de votar.

Portanto, em relação à satisfação com o desempenho da democracia, é possível confirmar a coerência dos eleitores entrevistados quando foram solicitados a manifestar o nível de confiança que têm nas instituições. A descrença é evidente de forma quase indiscriminada. Mesmo as organizações da sociedade civil, representadas pela Liga Guineense dos Direitos Humanos, que estiveram numa posição melhor, não receberam uma avaliação positiva. Essa situação não reflete apenas o baixo nível de confiança que existente atualmente no país, mas, de um modo geral, mostra a fragmentação sociopolítica. 

Na avaliação geral, a Liga Guineense dos Direitos Humanos obteve 27% de confiança dos eleitores entrevistados, seguida pela Presidência da República, que teve 13%. As outras instituições que representam o fórum da expressão democrática, como o executivo, o legislativo e o judiciário, foram reprovadas com 6, 8 e 7% respetivamente. Mesmo não fazendo parte de instituições com reconhecida importância no funcionamento da democracia, as forças de defesa e segurança também foram incluídas na avaliação, mas não passaram, respetivamente, de 10 e 7%.

O aspeto de género também mereceu a observação dos eleitores entrevistados, que defenderam a representatividade política nos espaços de tomada de decisão, permitindo que as mulheres e os jovens estejam representados. Embora 95% dos eleitores entrevistados sejam a favor, os participantes do grupo focal destacaram a necessidade de as mulheres reforçarem a solidariedade entre si, para que possam construir caminhos que as levem a estarem representadas nas decisões importantes. 

As próprias mulheres reconheceram a masculinização do espaço político e social, durante o grupo focal, como o principal fator de sua sub-representação. Quanto aos jovens, a observação é a mesma, mas há uma certa desconfiança em relação ao que as mulheres representam em termos de coerência, responsabilidade e fidelidade aos compromissos assumidos.

A credibilidade do processo de votação também foi observada, e 51% dos eleitores consideram que há falta de transparência. Concernente a isso, foram levantados diversos questionamentos, especialmente nos grupos focais, sobre a vulnerabilidade do recenseamento eleitoral, que facilita o registo de cidadãos estrangeiros por meio de testemunhas. Outro aspeto diz respeito à localização das mesas em espaços inadequados, o que compreende à validade do ato.

Observou-se a necessidade de reforçar os trabalhos de educação cívica dos eleitores. Isso pode ser feito por meio da sensibilização, para garantir que os eleitores se comprometam de forma mais responsável com os valores e princípios da cidadania.